Contexto

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O ensino médio brasileiro e a evasão antes e depois da pandemia

O ensino médio brasileiro é caracterizado pela baixa qualidade do ensino ofertado aos jovens, por elevadas taxas de reprovação, por abandono e por evasão, consequências diretas da negligência histórica do país com a educação pública ao longo do século XX. Até o fim dos anos 1980, por exemplo, a taxa bruta de matrículas no ensino médio era de apenas 40 por cento (MADURO, 2007; VAREJÃO, 2021), enquanto a taxa de conclusão era de 20 por cento (HELENE, 2012). Foi apenas após a transição para a democracia que o atraso começou a ser revertido, com o aumento das taxas de matrícula no ensino médio (Figura 1).


A evolução dos indicadores educacionais no Brasil, nos anos que antecederam a pandemia da COVID-19, foi amplamente documentada em diferentes estudos realizados com foco na ampliação do acesso, na permanência e na melhoria no aprendizado (SOARES, 2007; VELOSO, 2009; SOARES; ALVES, 2013; ALVES; SOARES; XAVIER, 2016; BARTHOLO; COSTA, 2018; FMCSV,2022). A aprovação de diversos marcos legais ao longo dos anos 1990 e 2000, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e a criação de mecanismos de financiamento da educação, como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), permitiram expandir a qualidade no ensino fundamental, aumentar a quantidade de alunos que terminam essa etapa e ingressam no ensino médio, expandir a matrícula no ensino médio e reduzir as taxas de abandono e evasão.

Como exemplo dessas melhorias, o percentual de jovens entre 15 e 17 anos matriculados no ensino médio cresceu — subindo de 24 por cento em 1991 para 75 por cento em 2020. As taxas de abandono, inicialmente em patamares bastante elevados, foram reduzidas no ensino médio, principalmente nas redes estaduais de ensino, o que sinaliza uma melhoria da equidade de acesso e potencial de melhoria da mobilidade social de jovens mais pobres que frequentam a rede pública de ensino (Figura 2).

A evasão escolar no Brasil é relativamente pequena nos anos iniciais do ensino fundamental, mas começa a aumentar na transição entre o 8º ano e o 9º ano, e, principalmente, na transição entre o 9º ano do ensino fundamental e no 1º ano do ensino médio. Entre 2007 e 2008, 10 por cento dos alunos evadiam ao fim do 9º ano, enquanto, em 2018, 6 por cento dos alunos ainda evadiam nessa etapa. É ao longo do ensino médio que observamos as maiores taxas de evasão. Entre 2017 e 2018, 10 por cento dos estudantes evadiram no 1º ano do ensino médio, 9 por cento no 2º ano e 5 por cento no 3º ano.

Tais números mostram que, apesar dos inúmeros avanços obtidos nos últimos 30 anos, as estatísticas educacionais do ensino médio brasileiro não são animadoras. A cada ano, 500 mil jovens maiores de 16 anos abandonam a escola no Brasil, e apenas metade dos jovens brasileiros terminam o ensino médio até os 18 anos. Entre os brasileiros nascidos em 1988, apenas 60 por cento terminaram o ensino médio até os 24 anos de idade.

Segundo dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica (2021), aqueles que frequentavam a escola, em 2020, representavam 94,5 por cento dos jovens nessa faixa etária, mas nem todos estavam matriculados no nível de ensino previsto para a faixa etária de 15 a 17 anos. Apenas 74,5 por cento frequentavam o ensino médio e o restante, 1/4 dos alunos, estavam estudando fora do nível recomendado para sua idade. Dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) sugerem que ainda temos mais de 480 mil jovens dessa faixa etária fora da escola, com o agravante de que esse percentual é mais alto nas regiões mais pobres do país.

Os altos índices de abandono e evasão escolar, ao fim do ensino fundamental e ao longo do ensino médio, fazem com que o Brasil tenha taxas mais baixas de conclusão do ensino médio que nossos pares, como México, Colômbia, Costa Rica ou Chile. A baixa taxa de conclusão do ensino médio no Brasil impacta negativamente a produtividade da economia brasileira e gera uma série de prejuízos. A escolarização da população é um dos determinantes fundamentais da produtividade do país, de sua distribuição de renda, da mobilidade social e da ruptura com a pobreza intergeracional (MINCER, 1974; BECKER, 1967; CARD; DOMNISORU; TAYLOR, 2018; CHETTY et al., 2014).
A conclusão do ensino médio traz altos retornos financeiros para os alunos, via maior produtividade, maiores salários, menor chance de gravidez na adolescência, melhor saúde e ganhos para a sociedade, por meio de menores índices de violência e aumento da produtividade geral da economia (CARNEIRO et al., 2013; CURRIE; MORETTI, 2003; MILLIGAN et al., 2004; OREOPOULOS, 2006, 2007; OREOPOULOS, SALVANES, 2011; PLUG, 2004).

As estimativas disponíveis mostram que um ano a mais de estudo gera um aumento de 8 por cento a 16 por cento do salário anual nos países desenvolvidos (OREOPOULOS, 2006a, 2007; OREOPOULOS; SALVANES,2011), e em torno de 15 por cento no Brasil (BARBOSA FILHO; PESSÔA, 2008). Raríssimos são os investimentos de baixo risco que apresentam taxas de retorno tão altas em termos reais, quando descontamos a inflação. São retornos monetários consideráveis para serem desperdiçados pelo jovem, trazendo não só prejuízos pessoais, mas para a sociedade.

De acordo com Barros et al. (2021), cada aluno que deixa de completar o ensino médio gera um prejuízo de R$ 395 mil reais para si e para a sociedade brasileira. Ao todo, o país perde anualmente R$ 220 bilhões em função da não conclusão do ensino médio de seus jovens. Caso o Brasil conseguisse igualar a taxa de conclusão do ensino médio com a dos jovens chilenos, teria um ganho de R$ 135 bilhões por ano.

Outro aspecto a ser destacado é que os diversos ganhos educacionais obtidos ao longo desses anos foram desiguais, quando defrontamos a etapa de ensino (educação infantil, ensino fundamental ou ensino médio), as regiões do país e o perfil socioeconômico dos estudantes e sua cor/raça.

Quando comparamos a porcentagem de matrícula dos alunos brancos e pretos, é possível observar diferenças grandes de 81 por cento para os alunos brancos e 71 por cento para os alunos pretos. O acesso também é desigual quando comparado o perfil socioeconômico das famílias — 94 por cento dos alunos mais ricos (quartil superior da distribuição do indicador) estão na escola contra apenas 70 por cento dos alunos mais pobres (quartil inferior da distribuição do indicador). As Figuras 5 e 6 mostram a proporção de jovens de 20 a 24 anos que concluíram cada ano de estudo e a proporção de jovens que concluíram o ensino médio, por quinto da distribuição de renda. A probabilidade de um jovem de 20 a 24 anos oriundo do quinto mais alto da distribuição de renda terminar o ensino médio no Brasil é de 94 por cento, mais do que o dobro de um jovem da mesma idade oriundo do quinto mais pobre — 45 por cento (PEREIRA, 2022).

Se a taxa de conclusão do ensino médio fosse mais igualitária e a taxa do 1º quinto (o mais pobre) e do 2º quinto fossem igualadas à do 3º quinto da distribuição, o Brasil economizaria R$ 64 bilhões de reais por ano. Por sua vez, se a taxa de conclusão dos 60 por cento mais pobres fosse igualada à do 2º quinto mais rico, a economia seria de R$ 135 bilhões por ano. Esses são números que reforçam uma dimensão central no debate educacional brasileiro, a saber, as enormes desigualdades de oportunidades educacionais que marcam a trajetória escolar de crianças e jovens no Brasil. A evasão escolar é, portanto, uma tragédia silenciosa que amplia as desigualdades sociais. É preciso que o tema seja encarado como prioridade pela sociedade brasileira.
Em relação às desigualdades de aprendizagem, muitos dos que ingressam no ensino médio têm de conviver com os prejuízos da sua formação anterior, uma vez que, no Brasil, apenas 41,4 por cento dos estudantes que concluem o ensino fundamental o fazem com aprendizagem adequada em português e 24,4 por cento em matemática (ANUÁRIO BRASILEIRO DA EDUCAÇÃO BÁSICA, 2021).

Os resultados negativos da aprendizagem conduzem ao atraso escolar, fruto da reprovação e da repetência. E esses indicadores afetam significativamente o fluxo escolar, porque, cada ano de atraso escolar, conforme estudos realizados (SOUZA et al., 2012), está associado a uma diminuição na probabilidade de aprovação, e esse efeito é crescente com a série. Em 2020, 26,2 por cento dos jovens matriculados no ensino médio estavam com dois ou mais anos de atraso em relação à série/ano adequado (ANUÁRIO BRASILEIRO DA EDUCAÇÃO BÁSICA, 2021). Esse processo, que pode estar aliado a outros fatores escolares e extraescolares, resulta em um distanciamento progressivo dos níveis de desempenho desejáveis e acaba por conduzir ao abandono e à evasão. Isso pode acontecer quando esse distanciamento passa a ser visto como insuperável pelo aluno.

O desafio para melhoria nos indicadores do ensino médio parece ser especialmente complexo por alguns fatores específicos. Primeiro, é importante reforçar que os estudantes chegam nessa etapa de ensino com grandes defasagens no aprendizado, o que demandaria um enorme esforço de recomposição das perdas anteriores. Há também enorme heterogeneidade entre os grupos que chegam ao ensino médio, o que amplifica o desafio pedagógico dos professores, coordenadores pedagógicos e diretores que vão trabalhar diretamente com os jovens. E, por fim, as características da adolescência que tornam essa etapa da vida potencialmente desafiadora para os jovens, as suas famílias e os profissionais da educação.

Uma escola inadequada e que oferece experiências distantes do cotidiano e da realidade de muitos estudantes pode potencializar o fenômeno do abandono e da evasão escolar, em especial para os alunos em situação de maior vulnerabilidade social. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C)/2019, coletados com jovens entre 15 e 19 anos que saíram da escola, mostram que o principal motivo declarado pelos jovens para evadir foi a falta de interesse em estudar com 38 por cento dos respondentes.

Em seguida, os entrevistados mencionam a necessidade de trabalhar (aproximadamente, 23 por cento) e por gravidez (aproximadamente, 11 por cento).

Considerando o histórico brasileiro de baixos índices de aprendizado nos anos finais do ensino fundamental e ao longo do ensino médio, além de um cenário de desinteresse dos jovens pelas aulas, o longo tempo de fechamento das escolas durante a pandemia criou um cenário sem precedentes de enorme crise na educação.

Há quatro efeitos amplamente documentados na literatura educacional sobre os efeitos da pandemia.

  1. A interrupção das atividades presenciais impactou negativamente o aprendizado dos estudantes. No Brasil, os principais estudos estimam perdas entre 4 e 10 meses, com efeitos médios maiores para as crianças mais novas (BARTHOLO et al., 2022; LICHAND et al., 2022; FMCSV, 2022; BARTHOLO; KOSLINSKI, 2022).
  2. Além disso, os alunos de nível socioeconômico mais baixo apresentaram perdas de aprendizagem mais acentuadas. No Brasil, há poucos estudos robustos, mas as melhores análises sugerem que os alunos mais pobres aprenderam a metade do que seus pares não vulneráveis em 2020 (BARTHOLO et al., 2022; BARTHOLO; KOSLINSKI, 2022).
  3. Durante a pandemia, em 2020, o abandono escolar medido pelo Inep apresentou uma queda, fruto da decisão de muitas redes de facilitar os critérios para a aprovação de todos os alunos. Tais números, no entanto, não significam que o jovem de fato estava estudando. Em 2021, já observamos um repique das taxas de abandono, que interrompeu a tendência anterior de queda consistente ao longo dos anos. A taxa de abandono não é igual à taxa de evasão, que não é divulgada pelo Inep desde 2019, logo antes da pandemia, e é possível que as duas taxas tenham divergido desde então. Um estudo que perguntou aos alunos durante a pandemia sobre as intenções de continuar estudando apontou para um risco de aumento substancial da evasão escolar, em especial entre os alunos em situação de maior vulnerabilidade social (LICHAND et al., 2021).
  4. Por fim, a pandemia e a interrupção das atividades presenciais impactaram negativamente a saúde mental de jovens e crianças. Os estudos mais robustos sugerem aumento da prevalência de transtorno de ansiedade e risco de episódio depressivo, com as meninas apresentando um risco maior (FMCSV, 2021, 2022; MAINSFIELD et al., 2022; PANCHAL; SALAZAR; FRANCO, 2021).

Especificamente sobre o impacto no abandono e na evasão, ainda sabemos pouco sobre os efeitos da pandemia nessa dimensão. Recente revisão sistemática publicada por Moscoviz e Evans (2022) encontrou 15 publicações para estudantes na pré-escola, até o ensino médio. A maioria dos estudos apresenta dados de países em desenvolvimento e sugerem um aumento das taxas de abandono escolar. Pesquisas identificaram dois grupos em situação de maior risco, a saber, os adolescentes e as meninas. Estudos recentes fornecem evidências que corroboram essa preocupação. Lichand et al. (2022) analisaram dados da rede pública estadual de São Paulo e estimaram que o risco de abandono nessa rede triplicou na pandemia, com risco mais elevado para os estudantes mais velhos.

Os dados sobre as taxas de abandono em 2020 e 2021 divulgadas pelo Inep podem estar subestimando o fenômeno da evasão e podem levar pesquisadores e gestores públicos a conclusões erradas. Durante a crise da pandemia, houve orientação de muitas secretarias estaduais para que as escolas não reprovassem alunos ou registrassem abandono em razão das dificuldades para implementação do ensino remoto e do acompanhamento acadêmico dos estudantes. O resultado foi uma queda acentuada na série histórica de abandono, quando analisamos o período anterior e durante a pandemia.

Uma alternativa utilizada por pesquisadores para analisar com mais fidedignidade o fenômeno do abandono e a evasão durante a pandemia foi calcular a Taxa Líquida de Matrícula para diferentes etapas da educação básica. Os dados apresentados em audiência pública na Comissão Externa de Acompanhamento dos Trabalhos do Ministério da Educação (MEC), realizada em 23 de junho de 2022, sugerem que a etapa mais impactada pelos efeitos da pandemia no abandono foi a educação infantil, seguida pelos anos iniciais do ensino fundamental.

Esse cenário merece especial atenção dos pesquisadores e gestores públicos no momento da publicação dos dados do Censo Escolar 2022. Na visão da equipe de pesquisadores, o impacto da pandemia no abandono e na evasão ainda não foi estimado de forma adequada e, em especial, no ensino médio, há um risco real de subestimação do fenômeno com os dados disponíveis até o momento. Esse é um fato que ressalta a relevância do presente estudo e a necessidade de pensarmos programas e ações que garantam o retorno das crianças e jovens para a escola e a sua permanência nos anos subsequentes.

A crise atual difere das anteriores porque a pandemia impactou os jovens de diferentes modos: interrompendo a formação básica e a profissional de muitos, destruindo empregos e colocando enormes obstáculos no caminho daqueles que estão tentando realizar o seu projeto de vida. Sem trabalhar e sem estudar, esses jovens não estão acumulando capital humano, o que pode levar a perdas de rendimentos significativas e persistentes que comprometem suas trajetórias de vida.

No relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial (WORLD ECONOMIC FORUM, 2022), a situação dos jovens é colocada na categoria de “perigos claros e atuais”, a mesma de doenças infecciosas, eventos climáticos extremos e estagnação econômica prolongada. A previsão é que está emergindo uma geração de jovens fortemente impactada, entrando no mercado de trabalho em uma “era do gelo” do emprego.

No contexto descrito, as trajetórias dos jovens estudantes são afetadas e, até mesmo, interrompidas por razões diversas. Isso preocupa porque a juventude pode perder a perspectiva de um projeto de vida de realizações pessoais e profissionais se não tiver preparo adequado para realizar as oportunidades que se apresentarem no futuro. Na avaliação do Fórum Econômico Mundial, o risco de “desilusão juvenil” está sendo amplamente negligenciado pela comunidade global, mas se tornará uma ameaça crítica para o mundo no curto prazo.

Referência Bibliográfica

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